XX ENCONTRO DA EPFCL Aracaju,
outubro, 2019
CORPOS
EM SACRIFÍCIO
Alba Abreu Lima
“aquilo que
herdaste de teus pais, conquista-o para possuí-lo” Goethe
A linguagem, fundadora da civilização humana,
surge para cada sujeito a partir de sua causa traumática onde será marcada para
ele, doravante de maneira infalível, a fronteira de seu gozo. O corpo diz
respeito à resposta do sujeito ao desejo: “que objeto sou no desejo do Outro?”
O Outro emprenha o sujeito de seus significantes que se imiscuem no corpo,
ainda que seja para produzir o silêncio dos órgãos. A linguagem embrenha-se no
corpo e leva o sujeito a esquecer de seu corpo, apenas relembrado no recorte de
certas zonas que adquirem um estatuto particular: zonas erógenas.
Lacan aborda inicialmente o corpo como uma
imagem criadora da identidade, pois a prematuração biológica do ser humano
poderia ser compensada no apoio da imagem do corpo do outro. Ou seja, quando
Lacan disse que o falasser adora seu corpo e crê que o tem, é porque quando o
corpo estava despedaçado o imaginário agenciou uma resolução a essa
fragmentação que é própria do animal homem dando-lhe consistência. Mas é pela
palavra – ‘presença feita de ausência’ – capturada por Freud na brincadeira do
Fort/Da que é regulada a função simbólica e a trama da lei atrelada ao desejo.
O nome-do-pai é o suporte dessa relação simbólica e possibilita na dissolução
do complexo de castração em cada sujeito, não sem ‘danos acidentais’, a
dramaturgia do seu destino.
Freud em um de seus textos mais importantes
sobre a fantasia, Bate-se numa criança, situa a criança na fase em que está
enredada em seu complexo parental, e diz sobre o amor edípico:
...’chega o tempo em que essa florada prematura
é prejudicada pela geada; nenhum desses enamoramentos incestuosos pode escapar
da fatalidade do recalcamento. Ou sucumbem a ele pela comprovação de eventos
externos... ou a partir de dentro, talvez apenas devido à não realização tão
longamente almejada.”
A fantasia é inconsciente e brota do complexo de
Édipo. Com a dissolução desse complexo, a fantasia conservar-se como resíduo,
indicando a posição do sujeito em relação ao gozo. A passagem pelo Édipo produz
um efeito de condensar as fantasias numa única fantasia, que Lacan pontua como
a particularidade que ordena o modo do sujeito estar no mundo.
Lacan
aborda o Édipo freudiano com a metáfora paterna em 1958, em De uma questão
preliminar, articulando o NP como a intervenção que insere o sujeito na
cultura, no mundo simbólico, pois se trata da inscrição no lugar do Outro do
significante. Desse modo o NP torna-se civilizatório e uma garantia do sujeito
percorrer a autoestrada sem se perder nas vicinais. O seminário das Formações
do Inconsciente é dedicado à metáfora paterna e somente mais tarde, no
Seminário ‘de um Outro ao outro’ ele assegura que a função do NP pode ser
sustentada por outras pessoas que não o pai de família. O pai perde a
característica de herói, de ideal, e sua virtude consiste justamente em não se
identificar com a função, mas conseguindo sustentá-la.
Freud
adverte, em Perda da realidade na neurose e na psicose, de 1924 que a neurose é
resultado de um recalcamento fracassado, o que quer dizer que o recalque e a
metáfora paterna são sempre falíveis. Ao que Lacan, no Seminário O Avesso da
psicanálise acrescenta o lugar do pai não mais apenas em sua dimensão
significante, mas como alguém encarcerado em sua causa sexual, colocando o real
em jogo e a falha mesmo da operação significante. Para tal, retoma o sonho de
Dora, no qual ela substitui o pai morto por um livro, o dicionário, onde se
ensina sobre o sexo: ‘assim, marca com nitidez que o que lhe importa, para além
da morte de seu pai, é o que ele produz de saber. Não qualquer saber – um saber
sobre a verdade”.
Em 21 de janeiro de 1975: um pai só tem direito
ao respeito, pra não dizer ao amor, se o dito amor, o dito respeito está
pèreversamente orientado, isto é, faz de uma mulher o objeto a que causa o seu
desejo. Se nos anos ’50 o universal da função paterna dizia respeito ao pai
simbólico, o pai morto, na versão paterna (père-version) Lacan resguarda o
singular, ou seja, como o sujeito se arranja com o modelo de gozo do pai. A
palavra versão etimologicamente significa vertere: virar no sentido de manobra
obstetrícia (VCE) ou de curso de um astro em sua órbita, revolução, mas também de
traduzir de uma língua a outra.
Em 1976,
no seminário O sinthoma, continua elucidando a pai-versão enlaçando com a
transmissão da castração:
“ a imaginação de ser o redentor, pelo menos na
nossa tradição, é o protótipo da pai-versão. Na medida em que há relação de
filho com pai, surge essa ideia tresloucada de redentor, e isso há muito tempo.
O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho...a castração é que o falo
é transmitido de pai para filho, e isso inclusive comporta alguma coisa que anula
o falo do pai antes que o filho tenha direito de portá-lo...a castração é uma
transmissão manifestadamente simbólica”
O caso do
cervo sagrado – o filme
Desde sempre, a literatura, a mitologia, as
artes em geral nos auxiliam na apreensão da clínica psicanalítica e na
possibilidade de sua transmissão. A versão contemporânea de Ifigénia em Áulide
criada pelo diretor Yorgos Lanthimos, no filme O Sacrifício do Cervo Sagrado,
encontra no elemento fantástico uma maneira de arrazoar o pai, a família e as
construções sociais contemporâneas com suas manifestações de violência ou
estagnação, prestes a explodir no fora-de-sentido.
A peça de Eurípedes na qual o filme se baseia se
passa antes da Guerra de Tróia, quando o exército dos aqueus é impedido de
avançar no mar pela falta de ventos. O comandante das forças gregas, Agamemnon,
consulta um oráculo: Calchas, que profetiza que tudo correrá bem se Ifigênia, a
filha mais velha e virgem de Agamemnon, for sacrificada à deusa Artemis. Para
convencê-la, mente que seria para casar com Aquiles, o guerreiro. Aquiles não
sabe absolutamente nada sobre o assunto, mas um mensageiro ouve a conversa e
conta dos planos de Agamemnon para Aquiles e para Clytemnestra. Clytemnestra,
revoltada, implora para que Aquiles a ajude a salvar Ifigênia do sacrifício. O
guerreiro concorda. Mas Agamemnon sabe que o sacrifício é inevitável: diz que
Ifigênia morrerá pela Grécia, uma causa que é maior do que todos eles.
Ifigênia, como uma heroína da tragédia escolhe ir para o sacrifício por
respeito a seu pai e pede que sua mãe não ponha luto e nem chore por ela. Segue
para a morte no templo de Artemis. No momento do sacrifício Ifigênia é
transformada num cervo, salvando-se do destino pela deusa. Os navios são
colocados em marcha e Tróia é invadida pelo glorioso exército grego.
O filme
de Yorgos Lanthimos desde o primeiro frame, um close-up de um coração batendo,
mostra a vida sendo salva pelas “belas mãos” do cirurgião, Steven,
protagonista, cuja vida obedece a regras rígidas e de uma tediosa apatia. Sua
mulher se oferece na relação sexual como anestesiada, quase desfalecida,
encenando a fantasia do marido; seus filhos obedecem ao ritual monótono de
afazeres domésticos, quase estáticos em suas atitudes. Nesse mal estar, entra
em cena Martin, filho de um paciente que veio a óbito na mesa de cirurgia e que
Steven passa a acolher em meio às relações familiares. Motivado pela culpa, a
partir de então Steven parou de beber por supostamente ter bebido no dia
anterior da cirurgia. Os dois começam a se encontrar com regularidade, mas as
conversas soam fora de sentido. Quando Steven convida Martin para jantar com
sua família explode todo clímax do filme. Martin fica muito pegajoso e ao
perceber que a relação saiu do controle, Steven evita o adolescente, gerando sua
ira que vai desembocar numa maldição sobre a família que, segundo Martin,
consiste em etapas de sacrifício dos corpos: 1) Primeiro ficarão paralíticos;
2) Depois, se recusarão a comer; 3) Os olhos começarão a sangrar 4)Por fim, a
morte.
Como na peça de Ifigênia, o pai deve escolher um
dos filhos ou a mulher para matar, caso contrário todos morrerão. A maldição
começa a se manifestar no caçula que acorda sem conseguir mexer as pernas. A
paralisia avança, e nenhuma explicação médica é encontrada, apesar da mulher
pedir para que ele seja examinado em sua subjetividade por acreditar ser um
distúrbio psicológico. Mas nenhum psi é consultado demonstrando bem o poder das
máquinas e da ciência moderna, que foraclui o sujeito. O hospital é completo em
termos de aparelhagem e os médicos consultados são os mais renomados dos
Estados Unidos. Daí é a vez da filha perder os movimentos e ficam internados no
hospital, sem que qualquer exame detecte causas fisiológicas para os sintomas
do corpo, param de comer e respiram com dificuldade. A confirmação do ‘poder’
de Martin vem quando a menina volta a andar momentaneamente enquanto conversa
com ele por telefone. É o momento em que a mãe vê que realmente não se trata de
uma doença orgânica, mas mesmo assim não consegue convencer o marido a pensar
numa causa subjetiva. Nada mais condizente com o que Lacan diz que a ciência
foraclui a verdade do sujeito e visa um saber no real sem considerar as causas
subjetivas que são próprias a cada um.
Bob, filho mais novo, em um momento de desespero
paterno diante da progressão dos sintomas, é depositário da confissão do gozo
do pai: quando tinha a idade do filho, Steven descreve uma cena em que masturba
seu pai na cama quando este está bêbado e sai quando ele ejacula
abundantemente. Estabelece com o filho uma relação de excesso de gozo, sem a
lei do desejo, onde o filho poderia não sabendo dessa revelação paterna,
construir uma barreira. Bob, então se coloca ai como o “cervo sagrado”, puro e
sem segredos tal qual a virgem Ifigênia, morre para salvar a família da
desgraça.
Concluindo
O impossível em termos freudianos é a castração,
na qual o pai estaria submetido à lei do desejo, Steve não sustenta, pois não
encontra a causa de seu desejo fora dele nesta mulher em que ele repete a cena
de gozo com o pai: ela tem de se fingir anestesiada na relação sexual e o
sintoma dos filhos atualiza essa anestesia.
Única garantia da pèreversion paterna (que, em
momento algum, derruba a função do pai) é a posição de um homem que faça de uma
mulher a causa de seu desejo, sem procurar estabelecer com os filhos uma
relação de gozo. Dai decorre a maneira pela qual o dizer do pai pode enlaçar os
registros RSI, que é a maneira de dar nome às coisas da vida, pela qual o
Nome-do-Pai verte-se em pai do nome. A relação entre as três dimensões nas
quais o falasser se estrutura, e com o que o sujeito tem de se virar, para além
da função paterna de amarração, para instituir, um enodamento que mantenha o
borromeano da cadeia.
A psicanálise não se propõe a curar as mais
variadas formas de violência e o modo em que os corpos são tratados como
suporte de sacrifício ou dejetos, mesmo se existe um caráter dito humanitário
para tal, mas na experiência analítica o sujeito tem a possibilidade de modificar
sua relação com o gozo. a análise permitiria um modo de desvelar a natureza do
artifício e permitir algo novo nessa amarração sinthomática.
Referencias bibliográficas:
FREUD Obras incompletas: neurose, psicose,
perversão. Ed Autentica.
LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: as
psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988
(1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de
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(1960) “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
(dez 1957/jan 1958) “De uma questão preliminar a todo tratamento
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(1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rj: Jorge
Zahar, 1991.
(1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
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(1974-75). O Seminário, livro 22: RSI.
(1975-76). O seminário, livro 23: O sinthoma. RJ: Jorge Zahar, 2007.
Vargas, T.C & Polo, V. (2017). “Ifigênia em
Áulis”: a guerra, as núpcias e a morte (Contribuições psicanalíticas para uma
leitura da tragédia). Trivium: Estudos Interdisciplinares (Ano IX, Ed.2), p. 232-245.